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Revoada - Texto de Cesar Kiraly para a exposição individual de Anna Paola Protasio



(escultura + vista da instalação)



Revoada


1. As paredes são tomadas. A imaginação aqui persevera e somos revestidos pela matéria áspera. Se há oposição? Ora, não é o liso ou o estriado, mas relevos muito pequenos organizados na pequena ofensa à ponta dos dedos cuidadosos. Para se mover nessa realidade é preciso desprezar um pouco a dor. Protasio precipita a superfície negra por todas as paredes, mesmo a coluna estrutural é envolvida. Há algo bem ameaçador nesse ambiente de lixas apontadas contra o mundo. Se viradas noutra direção, se friccionadas com alguma vontade, reduziriam todas as imperfeições a pó. Se investíssemos contra elas, certamente seríamos interrompidos por gotas de sangue. Sangraríamos antes de podermos vencer a agrura representada por essa forma de céu. Apesar de tudo isso, mesmo desafiando as chances, pássaros dourados cruzam o horizonte.

2. Impossível não lembrar d’A História de Gerhard Shnobble. Nela Will Eisner mostra que Shnobble é um ser humano comum, filho de pais comuns e criado para ser comum. Em seu oitavo aniversário, escorrega do telhado. Ao invés de morrer, flana lentamente até o chão. Seu pai, aturdido, reage dando uma surra no pobre, advertindo para nunca mais voar, magoado, o pequeno esquece da habilidade. Ele cresce e se torna empregado de banco. Depois de 35 anos de trabalho, ao invés de demitido, é transferido à função de guarda noturno. Um dia o banco é assaltado e ele é agredido na cabeça. Como recompensa, é finalmente mandado embora. Sai andando desvalido pela cidade. Aparentemente por causa do golpe que levou, consegue se lembrar que sabe voar. Ele sobe até o último andar de um edifício. Após se jogar no vazio, começa a voar. Nota que ninguém o vê. Faz algumas piruetas e tenta chamar atenção de algum público. É atingido por uma bala perdida. Flutua até o chão e morre. Eisner pede que não fiquemos tristes por Shnobble, mas pela humanidade. Porque ela nunca soube que houve um homem que sabia voar.

3. Não é apenas com negrume que somos envolvidos. Como abraçar um corpo vestido de agressivas lixas que nos recebesse sorrindo? Esperaríamos o imediato nascimento de asas? Seria viável aguardar o compartilhamento dourado? Ou não. Seria, então, como falar sobre o contato dos animais espinhosos no frio? Aproximaríamos o mais que pudéssemos para o calor corporal, sem exageros contudo, pelo perigo da incompatibilidade de espinhos? Sim, é diferente, se o corpo em lixa se aproxima, pode ser que aceitemos parte do incômodo, como dinâmica de cordialidade, desde que seja conhecido, que abrigue todos os bons efeitos da familiaridade, com a qual a experiência nos presenteia e da qual inconscientemente somos devedores. Se o corpo é estranho, se a vida que detém pode ser tergiversada, ora, apenas quem buscasse justamente as lixas toleraria tê-lo abraçado. É assim tão fácil obter calor, de tal forma que se pode dispensar uma sua fonte só porque por ela não temos simpatia?

4. Parece equívoco tomar o ânimo como intrínseco. Nessa conta o mesmo para o inanimado. Quem nos diz não podermos nos confundir? Se admitirmos que a diferença está toda no calor, como prever? Seria o calor o signo do ânimo ou o inverso? Não poderia a fonte de altas temperaturas estar por trás de afiadas lixas, estranhas a qualquer familiaridade? O calor é coisa posta, quem precisa dele o torna presente no corpo do qual se aproxima, um pouco como a beleza. Mas se sempre se precisa do calor, e se a animação é sempre possível, por que pode acontecer de desamparados sermos levados ao glacial? Haveria algo perverso na simpatia? Se sim, poderíamos ser levados a buscar calor onde não há e de ignorarmos que o frio pode ser uma forma de ânimo.

5. Protasio prolifera os pássaros, em matéria que nos evoca as dificuldades da simpatia. Como ser aquecido por lixas? São pássaros de mesma espécie, mas de ruidosa existência singular. Está claro que importa produzir o maior efeito de admiração possível: forçar a impressão. Para isso são feitos pássaros delicados, repletos de pequenos acidentes, em diferentes formações aéreas, são desejados, distanciados dos meios industriais em que são pousados, a tinta dourada, as placas de lixa, cada pássaro é um destino, ainda que se movam paralelos. O dourado industrial não serve para evocar beleza, mas para fazê-los perceptíveis, como ciclistas decididos a cortar o trânsito noturno, ou corredores em maratona pela madrugada, mais ainda, como marcadores em espécies animais ameaçadas etc.

6. Os pássaros são assombrosos. Eles estão quase sempre em bando para que possam se proteger. Ainda assim, se alvos do nosso animismo, se tornam representantes da liberdade. O desejo comum é ter a liberdade de voar como um pássaro. Por outro lado, não sem habitualidade, são percebidos como pragas. Um bando de pássaros famintos devorando lavouras é rapidamente associado à multidões de pessoas destruidoras. Uma nuvem de gafanhotos? Teríamos medo de tais portentos. Ser livre como um pássaro guarda violência assemelhada ao movimento que consome os recursos. Não é comum vestir uma estrutura com roupas de homem para espantar os pássaros? Seria o bando que nos visita o resultado de tal sorte de espanto? Se eles não são daqui, por que não voltam para o lugar de origem? Se assustamos daqui enquanto outros intimidam de lá, quando se daria o fim do voo? A beleza de querer voar como os pássaros é assombrosa, pois consiste em poder se mover sozinho.

7. Os pássaros se movem para onde precisam. Porém acabamos por achar que eles se movem para onde querem. Esse antagonismo nos leva aos espantalhos. Há intensa crueza em se espantar quem chega porque precisa. É justamente por essa urgência que espantar se torna tão problemático. O espantalho precisa ser tão terrível a ponto de obrigar o pássaro a voltar para o lugar de onde necessitava sair. Mais ainda, que os difusos custos de voltar sejam inferiores aos de enfrentar as forças que não permitem ficar. No fim, só rivalizam com os espantalhos as aves que se alimentam de animais mortos. Isso quer dizer que se simbióticas com a morte, o estrato da existência evitado por aquelas que migram, não há porque alguém se dar o trabalho de espantá-las. Elas nada têm a temer.

8. Fios dourados partem do teto e se prendem no chão, como um raio de luz que se expande. Protasio se move com destreza pelo deslocamento da matéria industrial. A função conceitual de tais fachos é não poderem ser atravessados, de interromperem o percurso. Lembram, mas não são luz. Não importa que sejam elegantes no ambiente. O ponto é que só se pode passar por eles se for mais estreito do que a distância entre os feixes. Não é linha imaginária, tão pouco um meridiano. Trata-se de uma fronteira. Não é bem uma gaiola. Porque essa é como se fosse uma prisão. Não há nada de bom na prisão para quem está dentro dela. Bem, salvo em histórias engraçadas, ninguém quer ultrapassar a cadeia para dentro de seus muros ou grades. A fronteira é bem diferente. Ela tenta instaurar ambiguidade onde na verdade só temos ambivalência. Nela se concentra o esforço de se ver a restrição ao trânsito como às vezes boa e às vezes ruim. As boas aves teriam na fronteira um aliado e as más um inimigo. Mas na verdade, as fronteiras são ambivalentes, quaisquer aves, para elas, são boas e más ao mesmo tempo. Como dissemos, mais protegidas estão as duras, de corpo estranho etc. A fronteira as têm como fronteiriças. Ao mesmo tempo boas e ruins, mas necessárias. Não se confundem com um homem que voa.


Cesar Kiraly curador da Galeria IBEU e professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF.   



Revoada - Anna Paola Protasio




REVOADA
ANNA PAOLA PROTASIO
Artista estabelece um contraponto do material (lixas de pintura) e a poética de asas indo ao encontro de uma esperança quase que inatingível.

Abertura: 10 de novembro de 2016 (quinta-feira), às 19h
Exposição: 11 de novembro a 16 de dezembro de 2016, de segunda a sexta, de 13h às 19h
Curadoria: Cesar Kiraly


No dia 10 de novembro, às 19h, será aberta a individual Revoada, de Anna Paola Protasio, artista selecionado através do edital do Programa de Exposições Ibeu. A mostra, que acontece na Galeria de Arte Ibeu, estará aberta à visitação de 11 de novembro a 16 de dezembro, das 13h às 19h, de segunda a sexta-feira, na Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar. A entrada é franca.

Revoada, instalação com lixas de pintura e desenhos, ocupará todas as paredes da Galeria Ibeu. Poderemos ver, também, uma escultura-mobile em cerâmica, uma instalação com arame e madeira, além de uma ação poética no dia da inauguração. Com curadoria do crítico de arte Cesar Kiraly, a mostra explicita o diálogo que Anna Paola Protasio estabelece com a aspereza do material (lixas de pintura) e a poética de asas de pássaros (desenhos gráficos) indo ao encontro de uma esperança quase que inatingível. 

Essa é a 13ª individual da artista, que trabalhou 20 anos com arquitetura e design de móveis. Com especializações em desenho e história da arte, desde 2006 se dedica às Artes Visuais. 

Nas palavras do curador da Galeria Ibeu, Cesar Kiraly: “As paredes são tomadas. A imaginação aqui persevera e somos revestidos pela matéria áspera. Se há oposição? Ora, não é o liso ou o estriado, mas relevos muito pequenos organizados na pequena ofensa à ponta dos dedos cuidadosos. Para se mover nessa realidade é preciso desprezar a dor. Protasio precipita a superfície negra por todas as paredes, mesmo a coluna estrutural é envolvida. Há algo bem ameaçador nesse ambiente de lixas apontadas contra o mundo. Se viradas noutra direção, se friccionadas com alguma vontade, reduziriam todas as imperfeições a pó. Se investíssemos contra elas, certamente seríamos interrompidos por gotas de sangue. Sangraríamos antes de podermos vencer a agrura representada por essa forma de céu. Apesar de tudo isso, mesmo desafiando as chances, pássaros dourados cruzam o horizonte”.

Segundo a crítica de arte e curadora Marisa Florido Cesar, Anna Paola transparece em sua obra a herança construtiva da arte. Entretanto, continua Marisa, “a artista introduz na abstração e rigor da geometria, elementos sensíveis que vêm perturbar a rigidez das estruturas e a vontade de ordem e de universalidade da tradição construtiva. Muitos de seus trabalhos são erigidos com objetos saqueados do cotidiano e esvaziados de sua função utilitária, neste caso, ela utiliza lixas que são usadas para pintura de parede. Deslocados para o universo da arte, tais objetos repetidos e reestruturados, ou unitários, agigantados ou diminutos, pesados ou frágeis, compõem um repertório poético visual de sonhos e dores, ficções e memórias, solidão e temores. Revelam, enfim, entre o cálculo estrutural e o inesperado dos afetos, a insustentável leveza dos dias e dos seres”.

Anna Paola Protasio já fez exposições individuais em museus e centros culturais do Rio de Janeiro como Museu Nacional de Belas Artes, Casa França Brasil e Centro Cultural dos Correios e, na capital de São Paulo, no Mube, Museu Brasileiro da Escultura em 2012, além dos Sescs das cidades de Bauru, São José do Rio Preto, São José dos Campos e Ribeirão Preto e em galerias no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Nova Iorque e Cartagena, na Colômbia, e em Genebra, na Suiça. Há, ainda, coletivas como 27º Salão de Artes Anuário Embu das Artes, em 2010, e a exposição “A Nova Escultura Brasileira”, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 2012. Ganhadora de prêmio do Itamaraty e de um primeiro prêmio de escultura em Shangai, ambos em 2011, e prêmio em Embu das Artes, em 2010.




A Vida Íntima - Texto crítico de Cesar Kiraly para a exposição "Copacabana", de Manoel Novello

Manoel Novello Atlantica 2016 acrilica sobre tela 138x240cm


A Vida Íntima


1. Esta escritura sobre a exposição do Manoel Novello é feita sob a lembrança de um belo livro do escritor argentino Adolfo Bioy Casares. Rememorar A Invenção de Morel com os últimos trabalhos do Novello na imaginação fez toda a diferença para o entendimento de ambos. No livro, Casares conta sobre um náufrago que se percebe numa ilha em que os habitantes desempenham sempre a mesma rotina. Aos poucos ele percebe que não são pessoas muito sistemáticas, mas imagens produzidas por uma máquina. Inclusive, por uma dessas representações, ele se apaixona.

2. Pode-se notar por que esse romance é tão invocado para se comentar os muitos desafios abertos pelo cinema na vida social. Mais ainda, o modo como essa arte repõe o tema da representação. Casares, ciente da possibilidade de tal encerramento, prepara uma armadilha. A máquina captura as pessoas que se tornam projetadas. Elas existem apenas a partir do movimento projetado. Uma forma de morte, mas também um tipo de vida eterna, como imagem condenada a repetir, se quisermos. Nesta artimanha, Casares desmonta a representação. Ela não é apenas um duplo do representado, como via de regra se a vê, mas, sobretudo, um substituto ambicioso. No caso, a representação não só substitui a pessoa, como não há mais o alguém representado, posto capturado pela máquina de projeção. Há vários filmes que retratam estrelas de cinema que se apegam à própria imagem de juventude, como é comum que alguém se prenda às gravações do passado. Os dois lados da representação se fusionam. A dimensão projetada se torna precedente à origem. Quem poderia discordar?

3. Lembrar d’A Invenção ao ver os trabalhos do Novello faz toda diferença, porque neste a projeção é abstrata. No mais das vezes se espera que a lembrança seja composta de figuras, como se a memória fosse a ilha do Casares, mas não poderia a máquina projetar figuras abstratas? No caso a máquina projeta aquilo “[...] que nenhuma testemunha admitirá que é imagem”, mas o fato é que essa imagem antes de nos fazer jurar abriga todas as sensações do capturado . Por isso pode ser tão perfeita. Então, e se a máquina projetasse a vida íntima da representação? Não o exterior, a pele, a fisionomia, e sim a condição dela, a sensação. A resposta seria uma máquina de mostrar abstrato. Está certo que nossa memória está repleta de pessoas que reconhecemos, além disso, envolvidas em romances familiares que nos concernem. Por isso até, o destino quase sempre trágico das lembranças. Ela é feita de personagens que se repetem no que temem repetir, na vida íntima das representações, os piores medos sempre se realizam. Mas se tomarmos todo o universo abstrato em que os personagens se inserem e as partes abstratas de que esses próprios personagens são feitos, então teremos o material para que a projeção seja a de cores embebidas da passionalidade do momento em que foram percebidas. A abstração das figuras que não podemos reconhecer, inchadas com as sensações que nos são inevitáveis. Uma vez que a condição de se induzir a causalidade é perdida, restam-nos as paixões e a cores, não o drama. Claro, as paixões, as cores e as formas não podem ser obtidas sem os seus contextos, mas não é necessário que o sentido das paixões, das cores e das formas seja aquele proveniente da narrativa.

4. “Não percebem o paralelismo entre os destino dos homens e das imagens?” – Casares pergunta . Se beneficiamos a composição abstrata da experiência, temos que concordar com a simbiose.  Trata-se, porém, de um destino indeterminado. Um que tem desarmada a expectativa causal. Qual a direção de todas essas cores e formas que estão sempre aos olhos, envolvedoras do corpo? Ora, as imagens seguem o mesmo caminho que seguimos, e não sabemos nosso destino. As cores e formas somente permanecem por algum tempo, depois somem. É preciso agarrar com muita vontade o romance familiar: mas as sensações nos envolvem sem esforço. Não é possível agarrar as sensações. Por isso “[...] a coincidência num mesmo espaço, de um objeto e de sua imagem total. Este fator sugere a possibilidade de que o mundo seja constituído, exclusivamente de sensações” .

5. A entrada mais comum na abstração, a mais desinteressante, é a que a compreende como arbitrariedade do nosso espírito com relação ao mundo. Ou mesmo descoberta da verdade por trás das coisas. A própria vanguarda abstracionista nunca se rendeu à forma como fato intelectual. O sintoma dessa resistência foi o aprofundamento de toda sorte de mística para explicar a presença de quadrados, triângulos e círculos nas obras de arte. A abstração do Novello nos leva à melhores instâncias. Ela pode ser compreendida pela relação com a experiência. As formas nem nos antecedem, nem são nossas contemporâneas, elas são geradas por uma das máquinas mais sofisticadas que fomos capazes de inventar: a de produzir harmonias. Pois bem, a máquina não é infalível, as representações possuem imperfeições, indeterminações e acidentes, estão sempre quebradas, mesmo que muitas casas depois da vírgula. Por isso a abstração do Novello remete tão fortemente à vida comum. Ela é construída sob plena consciência do acidente geométrico. As formas são experimentadas nos reflexos obtidos na cidade, pela observação distraída das luzes acendendo e apagando pelas janelas, nos canos aparentes subindo pelas paredes, na multiplicidade de cores nas fachadas, nas propagandas, nas roupas, na pluralidade de fendas no chão etc. Não é difícil perceber o abstrato por todos os lados da vida. Como diz Maya Deren, se vagarmos pela cidade com inocente disponibilidade, poderemos absorver a poética da abstração, sendo mais intensa quão mais imprevista. Em suma, basta sair para procurar por algo, sem saber exatamente o quê. Esta carga explicitamente impura da abstração do Novello a disponibiliza a ser lida conceitualmente.

6. Em 2014, Novello faz com que uma série de nove fotografias contraste com suas telas em acrílica. São vitrais e janelas escolhidas como quase-formas que se entregam na inocência. O abstrato impuro respira em seu anonimato. Além dessas fotografias, os títulos de suas exposições individuais flertam com o conceito, A Cidade em ProjetoA Cidade que me Guarda, e, agora, Copacabana. A cidade é o repositório da imaginação arquitetural, mas, e isso é mais sedutor, ela é, como dissemos, o duplo em que se pode observar os fragmentos de vida íntima do abstrato. A cidade se arrasta, está triste, histriônica, exultante, perdida etc. Nela estão nossas paixões reativas, impressões, cuja fisionomia é miríade de formas. Novello reúne e restaura a percepção ampla, aberta, que só nos é simples de ver quando estamos frágeis como vidro.

7. A cidade é uma das vias buscadas por Novello. Nisso torna explícito que seu abstrato é impuro, disperso na experiência. Ele é paisagem íntima perdida nas amplitudes das sensações que o distraimento nos permite. Esta forma de abstrato conceitual é curiosamente descritiva do modo como as paixões embebem o abstrato que nos ampara. Mas até aqui é como se houvesse distância entre o abstrato da intimidade e o disperso na vida comum. Novello tem procurado preencher esse espaço. Recentemente, no coreto do jardim do Palácio do Catete, sob um desafio instalativo proposto pela Isabel Portella, ele desenvolve o complemento entre a observação do mundo e a descrição do íntimo no abstrato. A instalação é composta por muitos fios de lã coloridos que desempenham trajetórias lineares, até que o peso de objetos de metal os obriga a ricochetear como se luz fossem e a fazer ângulo. Para Novello, há maciez no contato entre as sensações intrínsecas à vida e a elaboração dos planos descritivos em que as mostra em acrílica. É a sugestão de que a inocência, sugerida por Deren, é suspensiva e neutra. Ela é frágil, mas capaz de suportar o peso com que se a intercala. Ainda, é enfatizada, imprevisivelmente, por raios luminosos diretos ou intrometidos. Agora, ele repete a prática pela tensão dos fios na parte inferior da janela da galeria, como quem realiza o neutro também como um filtro, mais uma vez deixando a narrativa do lado de fora. Novello nos faz perceber que narrar e descrever são atividades distintas. A primeira se apoia em aura tendenciosa, rapidamente renunciada pela segunda. As telas possuem relevos variados em função dos diferentes tipos de tinta acrílica. As composições primam pelas transições suaves entre as cores intercaladas com benignos sustos de vermelho. A tela Atlântica rouba o ar com grandes espaços de tons mais suaves para o cinza e para o azul forrada por matizes bem escuros. Também podemos ser surpreendidos por corredores, como aqueles que nos fazem acidentalmente ver o mar por entre os edifícios. Há tanto a reconhecer, como nos nomes das ruas de Copacabana intercalados por Novello, em uma forma de poesia concreta.


Cesar Kiraly é Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF e Curador da Galeria IBEU.      


Manoel Novello Copacabana 2016 acrilica sobre tela 138 x 240 cm


COPACABANA - Manoel Novello



COPACABANA - Manoel Novello
Exposição individual do artista na Galeria Ibeu
amplia a relação entre sua obra e a paisagem urbana

Abertura: 13 de setembro de 2016 (terça-feira), às 19h
Exposição: 14 de setembro a 21 de outubro de 2016, de segunda a sexta, de 13h às 19h
Curadoria: Cesar Kiraly


No dia 13 de setembro, às 19h, será aberta a individual “Copacabana”, de Manoel Novello, artista selecionado através do edital do Programa de Exposições Ibeu. A mostra, que acontece na Galeria de Arte Ibeu, estará aberta à visitação de 14 de setembro a 21 de outubro, das 13h às 19h, de segunda a sexta-feira, na Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar. A entrada é franca.

Copacabana reúne seis pinturas de grandes dimensões, fotografias, desenhos e instalação. Com curadoria do crítico de arte Cesar Kiraly, a mostra explicita o diálogo que Manoel Novello estabelece com a cidade que vivencia e aprofunda as relações que o artista cria entre sua pintura, a arquitetura, o espaço urbano do bairro e sua orla marítima.

As pinturas de Novello são criadas a partir de um processo de construção e reconstrução de diagonais, horizontais e verticais: o artista sobrepõe estas linhas coloridas compostas como se fossem música, evidenciando planos e criando a noção de profundidade. Ao longo da criação de uma tela, linhas e cores são apagadas, engolidas por outras que as cobrem, exatamente como ocorre com os prédios, ruas e praças de uma cidade ao longo dos anos. Há dezenas de pinturas sob a pintura de Novello, assim como há, em uma cidade, infinitas paisagens soterradas por novas cartografias, fluxos e volumetrias. Na Galeria Ibeu, as seis pinturas se referem à situação urbana do bairro de Copacabana, especificamente, o que destaca as conexões entre as obras.

É a segunda vez que o artista apresenta, além das pinturas, fotografias e desenhos. Esses trabalhos colaboram no entendimento da visualidade. Copacabana se completa com uma instalação feita em fios coloridos de algodão, remetendo a uma paisagem marítima, próxima à galeria, que já se perdeu no crescimento urbano.

Nas palavras do curador Cesar Kiraly, “A cidade é uma das vias buscadas por Novello. Nisso torna explícito que seu abstrato é impuro, disperso na experiência. Ele é paisagem íntima perdida nas amplitudes das sensações que o distraimento nos permite. A cidade é uma das vias buscadas por Novello. Nisso torna explícito que seu abstrato é impuro, disperso na experiência. Ele é paisagem íntima perdida nas amplitudes das sensações que o distraimento nos permite. (...) Por isso a abstração do Novello remete tão fortemente à vida comum. Ela é construída sob plena consciência do acidente geométrico. As formas são experimentadas nos reflexos obtidos na cidade, pela observação distraída das luzes acendendo e apagando pelas janelas, nos canos aparentes subindo pelas paredes, na multiplicidade de cores nas fachadas, nas propagandas, nas roupas, na pluralidade de fendas no chão etc. Não é difícil perceber o abstrato por todos os lados da vida. (...) Esta carga explicitamente impura da abstração do Novello a disponibiliza a ser lida conceitualmente.”


Manoel Novello participou da Bienal de Curitiba de 2011 e Arte Pará 2010 e essa será sua 4ª exposição individual. Recentemente produziu um site specific para o Jardim do Museu da República, dentro do programa “Ocupa Coreto”, Galeria do Lago, com curadoria de Isabel Portella. É representado no Rio de Janeiro pelo Escritório de Arte Gaby Indio da Costa.

Catálogo NOVISSIMOS 2016

Clique na imagem abaixo para acessar o Catálogo NOVISSIMOS 2016. Arquivo pdf disponível na plataforma ISSUU para leitura e download.


Issuu

NOVÍSSIMOS 2016

Único Salão de Arte do Rio de Janeiro


Abertura: 26 de julho de 2016 (terça-feira), às 18h30
Exposição: 27 de julho a 26 de agosto de 2016, de segunda a sexta, de 13h às 19h


A Galeria de Arte Ibeu inaugura no dia 26 de julho, às 18h30, a exposição “Novíssimos 2016”. A mostra ficará aberta ao público de 27 de julho a 26 de agosto, com visitação das 13h às 19h, de segunda a sexta-feira, na Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar. A entrada é franca.

A Galeria de Arte Ibeu apresenta a 45ª edição do Salão de Artes Visuais Novíssimos 2016, onde as inquietações comuns a artistas de diversas gerações e localidades estão reunidas em um mesmo espaço expositivo. O objetivo de NOVÍSSIMOS é reconhecer e estimular a produção desses novos artistas, e com isso apresentar um recorte do que vem sendo produzido no campo da arte contemporânea brasileira.

Já participaram deste Salão artistas como Anna Bella Geiger, Ivens Machado, Ascânio MMM, Ana Holck, Mariana Manhães, Bruno Miguel, Pedro Varela, Gisele Camargo, entre outros. Até 2015, 598 artistas já haviam participado desta coletiva anual.


Novíssimos 2016 conta com a participação de 12 artistas que apresentarão trabalhos em pintura, instalação, objeto e fotografia. Os artistas selecionados são: Amanda Copstein (RS), Gilson Rodrigues (MG), Gustavo Torres (RJ), Hermano Luz (DF), João Paulo Racy (RJ), Kammal João (RJ), Manoela Medeiros (RJ), Maria Fernanda Lucena (RJ), Mariana Katona Leal (RJ), Rafael Salim (RJ), Reynaldo Candia (SP) e Vera Bernardes (RJ).

O artista em destaque no Salão de Artes Visuais Novíssimos 2016 será contemplado com uma exposição individual na Galeria de Arte Ibeu em 2017. O nome do premiado será divulgado na noite de abertura.

Nas palavras do curador, Cesar Kiraly: “Nesta nova edição do Salão de Artes Visuais Novíssimos da Galeria IBEU, o curador Cesar Kiraly se vale dos 13 livros da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen para dispor as obras dos 12 artistas escolhidos. As obras são percebidas como internas à melancolia do tempo circunscrito, aquela dentro da qual o tempo pode ser percebido passando. Para isso, cada artista recebe uma obra da autora, com seu respectivo ano. Por exemplo: Amanda Copstein / O Nome das Coisas, 1977 ou Vera Bernardes / Mar Novo, 1958. A intenção é permitir que a bruma do livro envolva o trabalho ao mesmo tempo em que esse se mostre coerente com os nomes implicados na fabricação poética. O décimo terceiro livro, O Nome das Coisas, 1964 foi escolhido como aquele que conduz a lógica dos encontros entre livros e artistas e nomeia a coletiva.”


SALÃO DE ARTES VISUAIS Novíssimos 2016
Abertura: 26 de julho de 2016 (terça-feira), às 18h30
Exposição: 27 de julho > 26 de agosto de 2016
Horário de visitação: segunda a sexta-feira, das 13h às 19
Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar - Rio de Janeiro – RJ

Sea Change - Texto de Gaby Collins-Fernandez para a individual de Marcela Florido



Sea Change
Marcela Florido Signs of Love and Recent Paintings

When the weather adjusts in seasons or all of a sudden, the city streets and transit are populated not just by bodies but a convergence of sweaters, umbrellas, sundresses. In these moments clothing is not normal, it does not just cover and uncover: it adorns, inflects—en masse—in relation to the literal environment. The rapidity of the shifts is a reminder that we present ourselves first in reaction to our surroundings. Usage always raises a question of context.

When Marcela Florido paints a figure, it may not wear a lot of clothing; rather, figures and gestures don aesthetics and genres. In one painting (Navegando), a female nude appears to get stuck in an abstract form as a toddler might in a turtleneck. In Seascape, Variation II, a cubist mouth comes in and out of focus in the foreground, presenting the landscape in the background in a lip-tinted frame. Often a graphic heart will punctuate the surface, as if to remind the viewer that these images are invented by an artist with a hand that will behave as it desires, alternately allowing for harmonies and dissonances.

Florido includes a landscape in almost all of the works, seen through painted windows or blocked-out areas of color. They are largely images of waves and shores, the various dramas of paint, mark-making, and figuration enacted at sea. The paintings’ landlessness creates the possibility for the juxtaposition of often incongruous aesthetic languages. Unmoored from solid ground and protected from the elements by formalism and floaties, the central characters of Florido’s works—be they women, surfers or squiggles—are presented as ripe for transformation.


This transformation is essential to Florido’s conception of representation. Rather than present specific, particular women, Florido’s semi-nude female figures diagram certain accepted ideals of female beauty and sexiness. The implication is to link aesthetics, whether enacted on the surface of a painting or in our understanding of real bodies, to ideologies: the “concreteness” of our formal expectations of how we ought to look are not so different from the abstract linkage of geometry to social idealism and political aspiration. In this way, Florido is able to emphasize the importance of figuration in contemporary painting both by presenting the figure at all, and also by emphasizing the rhetorical aspect of figuration in relation to other aesthetic-rhetorical structures. In [blue penis body painting], the drama between the woman’s nubile backside and the chunky form subsuming her head underscores the similarity of the aesthetic structures at work in our concepts of bodies and blocks.

The sea, the beach, is public space. Even spaces of leisure and escape are inflected by the content of what is being escaped from. In this space, at the edge of the city, we are far enough away from culture that shifts can occur as experiments, without too much pressure. Florido’s paintings emphasize the play that can happen liminal space as essential: because here we can learn the languages at work in the systems that describe our lives and surroundings, and in so doing, we can try to use them instead of being used by them. 

Gaby Collins-Fernandez
May 2016


Sinais de Amor e Pinturas Recentes - Marcela Flórido




A Galeria de Arte Ibeu recebe no período de 14 de junho a 8 de julho, a exposição da artista brasileira Marcela Flórido, que desde 2008 vive e trabalha no exterior, com passagens por Londres, New Haven e, atualmente, no Brooklyn, NY.

Em Sinais de Amor e Pinturas Recentes, a artista convidada Marcela Flórido reúne na Galeria Ibeu sete pinturas em grandes formatos. 

“Minha prática entrelaça noções de materialidade, memória e presença. Ao explorar os efeitos psicológicos - alienação, estranhamento, esterilidade - de um mundo constantemente mediado, essas novas pinturas questionam uma política que tem impactos profundos e muitas vezes pungentes sobre o corpo. Em meio a estas questões, eu tento uma abertura: um momento de possibilidade política e artística. A possibilidade do pessoal, equilibrado entre o real e o irreal”, diz a artista.

As pinturas desta exposição visitam memórias pessoais, livros, imagens de mídias sociais, arquivos pessoais, imagens da arquitetura modernista, que se acumulam em camadas finas de tinta e borram suas divisões. A materialidade das obras grava e torna visível sua instabilidade: rabiscos em um espelho embaçado, um objeto inesperadamente sólido que interrompe a sua visão ou então marcas do pincel. Essa tensão espacial insinua-se em narrativas femininas.

Cada camada de tinta produz uma história maior, apresentando ao espectador uma cena através de perspectivas complicadas. Ilusionismo e materialidade convergem, ou pelo menos, assumem um novo relacionamento. E nesta paisagem alterada, o corpo está presente. Distorcidos ou reinventados, esses personagens se misturam com seus ambientes de forma ambivalente, sempre em risco de dissolução.



Marcela Florido - Rio de Janeiro, 1988. Vive e trabalha no Brooklyn/NY. Formada pela Central Saint Martins (2008), The Slade School of Fine Art, Londres (bacharelado, 2012) e Yale University School of Art, CT (mestrado, 2015). Em 2015, a artista recebeu o Prêmio Viridian de Lauren Hinkson, curadora sênior do Museu Solomon Guggenheim, e foi palestrante na Art Basel, em Miami Beach. Seu trabalho foi destaque em publicações como Les Femme Foles e Paglia Revista. Seus próximos projetos incluem exposições na Carl Freedman Gallery, Londres e HEREart em Nova Iorque. Seu trabalho já foi exposto em cidades dos Estados Unidos, Reino Unido, Itália, França, Emirados Árabes Unidos, Brasil, entre outros.

Selecionados NOVISSIMOS 2016



Conforme Edital, a Comissão Cultural do Ibeu torna público o resultado final de NOVISSIMOS 2016.
Dentre os 206 projetos inscritos, foram 12 os artistas selecionados:

Amanda Copstein (RS)
Gilson Rodrigues (MG)
Gustavo Torres (RJ)
Hermano Luz Rodrigues (DF)
João Paulo Racy (RJ)
Kammal João (RJ)
Manoela Medeiros (RJ)
Maria Fernanda Lucena (RJ)
Mariana Katona (RJ)
Rafael Salim (RJ)
Reynaldo Candia (SP)
Vera Bernardes (RJ)



A Galeria Ibeu agradece a todos os inscritos!



Tempo Fóssil - Texto de Michelle Sommer para exposição de Mari Fraga







Tempo Fóssil

Michelle Sommer



“Muitas vezes pensei, durante a noite, nessas coisas debaixo da terra que os brancos cobiçam tanto. Perguntava a mim mesmo: “Como teriam vindo a existir? De que são feitas?”* Para o xamã  yanomami David Kopenawa, o que os brancos chamam de “minério” são as lascas do céu, da lua, do sol e das estrelas que caíram no primeiro tempo.

No seu processo artístico, Mari Fraga desenterra fragmentos de petróleo, betume, carvão mineral, madeira sedimentada, sal. Molda, então, a matéria que estava escondida sob a terra como as raízes das árvores. Da matéria fóssil, unidas entre si pela presença do elemento químico Carbono, emerge  plasticidade, em suas distintas temporalidades. O Carbono é o nó poético - com cor, rugosidade, textura e crítica – que está contido na escala fractal das obras, em sua maioria inéditas, de Tempo Fóssil.

A sessão de acupuntura – no corpo ou no planeta – colapsa as escalas: a pele torna-se crosta, o corpo torna-se Terra. A energia solar condensada e fossilizada das pedras de carvão mineral transpassam tábuas de madeira nova. Nesse encontro de gerações, matérias ajustam-se como dá, entre os veios da madeira lascada que agora contém a pedra, com seus resquícios de florestas que ocuparam a Terra há milhões de anos. Um zoom in e temos o mapa da América do Sul e Brasil perfurado por agulhas de acupuntura banhadas a ouro (essa poeira brilhante) marcando os locais de extração de petróleo. Do nosso continente, submerso na camada viscosa de betume, resíduo final do petróleo, pingam gotas viscosas. Choramos ouro negro.

A nossa economia industrial baseia-se em energia fóssil e no consumo crescente de espaço, tempo e matérias-primas que adquiriram a dimensão de uma força física dominante no planeta. A partir da investigação da matéria fóssil – essa que fornece dados sobre a nossa evolução biológica - Mari Fraga explora os movimentos de declínio do nosso mundo, em seu catastrófico momento político e climático.  Entre homem e natureza não são as relações que variam, mas as variações que relacionam.

A matéria fóssil contém o tempo. A matéria fóssil é memória para nós, humanos, que andamos com a cabeça cada vez mais cheia de esquecimento*, para atentarmos para um outro tempo, talvez não tão infinito assim. Em fluxos materiais carbônicos, estão arte e desastre, em lampejos de lucidez poética. Nas proposições artísticas de Mari Fraga, na matéria fóssil extraída da Terra residem as raízes do céu.



* KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. Palavras de um xamã yanomami; tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro - 1a ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Passagens Atlânticas - Texto crítico de Cesar Kiraly para exposição de Leandra Lambert



Passagens Atlânticas


incapaz de não se expressar em pedra
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso

João Cabral de Melo Neto in: _ A Educação pela Pedra


1. Esta exposição foi pensada para ser vista imersa em textura sonora. Entre cortes de composição musical e mais os rumores confusos da vida comum. A questão é a da continuidade nem sempre harmônica entre o som e a imagem. Daí Lambert montar usando ruídos como pequenos átomos a grudarem nas imagens e nos objetos como o faz a luminescência. Por isso deve o contemplador se colocar em tal passividade, atendente aos grânulos de som a pousarem sobre o arco de fotografias e objetos que se desenha diante dos olhos.

2. Do lado direito, temos par de luvas brancas, cujo peso é fornecido por quantidade de areia que lhes enche os dedos e palmas. Elas são suspensas por ameaçadores anzóis de quatro ganchos. Essas pesadas mãos seriam aquelas do último toque antes da despedida. O contato revestido torna áspero desempenhar o movimento fino. Por isso, tais dedos insistem para virar as páginas em que se acompanha a leitura de uma estranha sorte de objetos. Isso nos leva ao lado esquerdo, nele temos a amostra do desconhecimento da própria força. Da mesma forma que os sons são átomos montados / o que os torna chaves à decifração dos modos da vida comum / as pedras portuguesas funcionam como partículas da cidade. Ainda que nem sempre perceptível, uma cidade se monta de incontáveis cubos. Um cubo perfeito é uma tolice, seria como se pudesse existir o átomo de cidade na fôrma mesma da nossa ingenuidade. Nessa medida Lambert nos permite adivinhar o seu nomadismo. Além do que, envolve-nos com seu lirismo de quinas duras. Ela deambula pelas ruas e seus olhos são voltados para o chão. Ora, se uma cidade é o equilíbrio improvável de átomos pictóricos repletos de arestas, nada mais justo que eles cedam de suas posições originais e nos ofereçam a ontologia, a despeito mesmo da pretensão de alguns em os esconder. Lambert percorre o mosaico da vida urbana sabendo que vai encontrar tais falhas espirituosas. Ela as identifica / resgata-as / com todo carinho do mundo, cuida desses duros fragmentos de cidade como a um animal ferido.

3. Donde se pode voltar aos desníveis de intensidade, pois ao mesmo tempo em que trata a cidade naquilo que dela se desprende, escrevendo em sua superfície, compondo-a em pesados adornos, revela uma rigorosa pedagogia. A pedra, antes educada como elementar, depois recolhida pela lírica cautela, para ser tratada do mal que a fez deslocada do todo, recebe uma outra educação. À pedra uma verdadeira educação pela pedra. Existe um amor do querer-agarrar e outro do juízo suspenso. Mas Lambert ama essas pedras com disposição intermediária. Elas são envoltas em carinho, porém adquirem consciência de serem potenciais quebradoras de vidraças. Elas se reconhecem passivo-agressivas. Aquela sonoridade que a tudo envolvia como luminescência, então, eram também grânulos de asfalto dispersos no ar a reagir com a fumaça dos carros.

4. Após viver em Paris os acontecimentos de 1848, Alexis de Tocqueville toma o cuidado de registrar suas memórias do evento. Elas são atravessadas por sentimentos conflitivos: o de pertencer ao parlamento de uma monarquia em colapso, a preocupação de preservar sua esposa e seu sobrinho e o assombro curioso com o tipo de metamorfose que estava a assistir. A cidade não apenas sofria os acontecimentos, mas, como um ente anímico, ela parecia pensar com eles. Mais, ainda que os oprimidos não dispusessem de uma filosofia que os orientasse a agir, aquele amálgama de corpos e prédios se apresentava como um pensamento. Tocqueville registrava o nascimento do pensamento social: o de uma existência meio cidade, meio gente. Um dos indícios que o permitia indicar tais fenômenos era justamente o comportamento das pedras. Como assim? Ele diz que de 1789 à 1848 os habitantes de Paris desenvolveram sabedoria prática para construção de barricadas à interrupção do fluxo das ruas. Elas eram montadas com pedras equilibradas. Assim, nos momentos de inflexão social, nos quais, como diz Burke, a partir da Revolução, os exércitos não mais hesitam de marchar sobre a população; a despeito da posição ideológica, a cidade precisa interromper suas ruas para preservar as pessoas. Uma barricada mal pensada é sinônimo de massacre. Seria equívoco ser dogmático e começar pela certeza de que as ruas de Paris falam e sabem o que fazem, porém, se elas insistem em nos dizer o que precisamos saber, e percebemos a sua cumplicidade, por que não escutá-las? O animismo bem compreendido parece ser bem mais consistente que o pampsiquismo.

5. Parece-nos que a perspectiva não subsiste na cosmologia. Se estão juntas, então uma delas é de mentirinha. No duro, se muito, o Atlântico abriga cosmologias jesuíticas de resultados, com ou sem fumaça, no mais, resta um largo e interessante perspectivismo Atlântico. As pedras portuguesas são um belo exemplo disso. Em Lisboa, os calceteiros, instaladores de tais átomos construtivos, preferem, num intrincado sistema de regras, não só perfeitamente colocar as pedras uma ao lado da outra, segundo o motivo escolhido, como não permitir que nenhuma supere a outra em altura. O resultado é um lindo e horizontal espelho de pedras. Nele escorregões são frequentes e mesmo inevitáveis dependendo do solado escolhido para o dia de chuva. Sob rebuliço social, remover uma delas é quase impossível. A conversa com essa pedra é animicamente frustrante, principalmente nos momentos de resistência. Em Copacabana, os colocadores de calçada copiam os temas lusos, mas a superfície é plena de irregularidades, donde os sapatos encontram acidentes a interromperem as quedas, e, na resistência, ampla sorte de quinas a dialogar com a imaginação necessária à conservação.

6. Entre as pedras e as mãos (iluminadas ou oxidadas) encontramos líricos momentos vítreos. As passagens atlânticas não são apenas feitas de quinas, mas também de profundidades. Atlas sustenta nas costas um imenso cubo repleto de água salgada e tantos capilares de água doce. Além de nos equilibrar, nós que somos animais úmidos capazes de ter a impressão de afogamento com tênues variações de temperatura, ou se nossas respirações tocam a superfície das vidraças. Simultaneamente habitamos as superfícies das cidades e imergimos na imagem de modo a provocar o surgimento de lâminas que nos dividem. A fotografia dentro d’água funciona nesse registro. Ela desafia a percepção comum das superfícies para encontrar novas folhas a partir do meio. As possibilidades são inúmeras, posto a luz ser instável na água que revira. O resultado é o registro do entremeio. Afora ficar no convívio entre o abstrato e o figurativo. Sabemos onde estamos e somos incapazes de determinar o que vemos. Se apurarmos, temos os tons de minério tendentes ao ouro na imersão em água doce e a agitação como se a imagem fervesse em bolhas de mercúrio, na água salgada. O afundamento implica num outro tempo, compasso de espera, interrupção das capacidades irônicas, para a operação dos modos contemplativos.

7. Se a fixação das lâminas vítreas é um desafio, o segundo é saber como dispô-las em relação. Tais não contam com um modelo. Na Avenida Atlântica a questão é bloquear o motivo e individuar os espécimes soltos, no Oceano Atlântico, e na Mata Atlântica, o objetivo é montar uma relação emotiva entre as lâminas. Sim, elas, uma à uma, podem ser situadas, mas em dinâmica de composição, de analogia erótica, como indica Warburg no seu Atlas, querem emitir, a quem as vê, a sensação de improvável acerto. Trata-se da escolha certa no posicionamento lado a lado de aleatórias imagens nascidas, desde sempre, umas para as outras.


Cesar Kiraly
Curador da Galeria IBEU e Professor de Estética e Teoria Política 
no Departamento de Ciência Política da UFF
                 

Leandra Lambert - Passagens Atlânticas





A Galeria de Arte IBEU inaugura no dia 18 de abril, às 19h, duas individuais simultâneas das artistas Leandra Lambert e Mari Fraga, com curadoria de Cesar Kiraly e Michelle Sommer, respectivamente. As artistas foram selecionadas através do edital do Programa de Exposições Ibeu 2016/2017. As exposições ficarão abertas ao público de 19 de abril a 20 de maio, com visitação das 13h às 19h, de segunda a sexta-feira, na Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar. A entrada é franca.

Em sua segunda exposição individual, Leandra Lambert apresenta fotografias da série "Entremundos (pelo olho do bicho)", uma composição sonora e objetos poéticos como as "Luvas de Areia" e a "Gargantilha de pedras portuguesas, asfalto, monóxido de carbono e engasgos", relacionados à experiência de suas três Atlânticas: a avenida em Copacabana, a mata e o oceano.

A exposição relaciona diversas concepções do termo "passagem" a esse universo: a passagem dos corpos pelos ambientes, o transitório, a passagem do tempo; a noção de passagem literária, passagens entre ficção e história; a passagem de um estado a outro, de uma matéria a outra, transformação; lugar de transição e devir, espaço do que antecede o desconhecido.

Em Passagens Atlânticas, Leandra Lambert dialoga com os vários sentidos do Atlântico. Trate-se de exposição em que aparece na forma da Avenida Atlântica e suas pedras portuguesas, o Oceano Atlântico e seu mar revolto e a Mata Atlântica e seu fundo repleto de minério tendente ao ouro. O sentido da vida urbana surge na forma de objetos que transpiram a dureza do cotidiano. Por outro lado, o Oceano e a Mata são mostrados em série de líricas fotografias submersas que inspiram a sensação de “lâminas vítreas”, como escreveu Cesar Kiraly, curador da Galeria IBEU.




Leandra Lambert é artista multimídia em atividade desde 2009 e compositora-performer em música eletrônica/experimental desde o início dos anos 90. Participou de exposições e eventos no Brasil, EUA, França, Chile, Cuba, Noruega e Rússia. Sua primeira exposição individual foi Danças Atlânticas, no CCJF, Rio de Janeiro. Doutoranda em Artes, em co-tutela UERJ / Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

Mari Fraga - Tempo Fóssil


A Galeria de Arte IBEU inaugura no dia 18 de abril, às 19h, duas individuais simultâneas das artistas Leandra Lambert e Mari Fraga, com curadoria de Cesar Kiraly e Michelle Sommer, respectivamente. As artistas foram selecionadas através do edital do Programa de Exposições Ibeu 2016/2017. As exposições ficarão abertas ao público de 19 de abril a 20 de maio, com visitação das 13h às 19h, de segunda a sexta-feira, na Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar. A entrada é franca.

A exposição individual Tempo Fóssil, da artista Mari Fraga, com curadoria de Michelle Sommer, parte de uma pesquisa sobre o elemento Carbono, onde a artista atravessa diversos materiais – nanquim, grafite e carvão – para recentemente se debruçar sobre a energia e os materiais fósseis, como petróleo, asfalto, carvão mineral e gás natural. “O trabalho acabou por adentrar a esfera da política a partir de uma trajetória de investigação da matéria”, conta a artista.

A exposição na Galeria Ibeu exibirá o vídeo “63 Perfurações” (2015). Neste trabalho observamos uma sessão de acupuntura sobre um mapa mundi marcado nas costas da artista por exposição à luz solar. Inédito no Brasil, “63 Perfurações” foi exibido na SU Gallery Konstfack, galeria em Estocolmo, Suécia, em 2015. A distância radical entre as escalas do humano e do planeta desafia nossa percepção de espaço e tempo, temática que é explorada nas obras “Cálculos para Acupuntura Planetária” (2015) e na escultura inédita “Fosso Fóssil”. Por fim, a escultura também inédita “Gerações” marca o encontro entre uma madeira nova e uma pedra de carvão mineral – resquícios de florestas que ocuparam o planeta Terra há milhões de anos.

A curadora Michelle Sommer diz no texto de apresentação da exposição: “No seu processo artístico, Mari Fraga desenterra fragmentos de petróleo, betume, carvão mineral, madeira sedimentada, sal. Molda, então, a matéria que estava escondida sob a terra como as raízes das árvores. Da matéria fóssil, unidas entre si pela presença do elemento químico Carbono, emerge  plasticidade, em suas distintas temporalidades. O Carbono é o nó poético - com cor, rugosidade, textura e crítica – que está contido na escala fractal das obras, em sua maioria inéditas, de Tempo Fóssil.”




Mari Fraga é artista e pesquisadora. A ação humana na natureza é o foco de sua prática recente, que problematiza as fronteiras entre o natural e o artificial. Doutoranda em artes pelo PPGArtes UERJ, desde 2012 é editora da Revista Carbono, publicação online que propõe diálogos entre pesquisas artísticas e científicas. Foi curadora dos Encontros Carbônicos, em 2014 e 2015.

Edital NOVÍSSIMOS 2016





Visão Fontana - Bruno Belo


GALERIA DE ARTE IBEU apresenta “Visão Fontana”,
primeira individual de Bruno Belo

Abertura: 8 de Março de 2016 (terça-feira), às 19h
Exposição: 9 de março a 8 de abril de 2016, de segunda a sexta, de 13h às 19h



No dia 8 de março será aberta a individual “Visão Fontana”, de Bruno Belo, artista selecionado através do edital do Programa de Exposições Ibeu. A mostra, que acontece na Galeria de Arte Ibeu, estará aberta à visitação de 9 de março a 8 de abril, das 13h às 19h, de segunda a sexta-feira, na Av. N. Sra. de Copacabana, 690 | 2º andar. A entrada é franca.

Em Visão Fontana, Bruno Belo reúne na Galeria IBEU um recorte da sua produção recente. A mostra apresenta trabalhos em tela e papel, em grandes e pequenas dimensões, executados com tinta a óleo, acrílica, aquarela e pó de grafite, todos inéditos. As obras apresentadas são o resultado de um trabalho desenvolvido a partir das inter-relações e reordenação de fragmentos de imagens, textos, apropriações, referências cinematográficas e da fotomontagem, expondo “camadas” da poética do artista.

A pintura se revela gradativamente em uma imagem pouco referencial. A ideia não é reproduzir o visível, mas entorná-lo neste meio pictórico, de cores lavadas, permitindo que imagens extraídas de fontes dessemelhantes possam se fundir em um processo de sobreposição de camadas e transparências. A construção do trabalho deriva da ideia de “Cut Up” de W. S. Burroughs e surge a partir de um processo de constantes projeções de imagens sobre a tela, utilizando um equipamentos antigo de 100mm e também fotografias extraídas de fontes diversas, gerando assim novas possibilidades e construções ao processo de pintura – revelando uma convergência que não é unívoca, não reproduz verdades, mas produz sentidos, em que as imagens se confundem à essa pintura na qual ambas não dariam conta da experiência a que se referem, conta Bruno Belo.

Enxergar as coisas por igual “moda ave”, como dizia Manoel de Barros ao falar sobre visão fontana, se aproxima do trabalho do artista através das mudanças de percepção e desconstrução de significados – permitindo que fragmentos e partes se relacionem, mimetismos, contágio... Não é para ilustrar a experiência, mas revelar a nova substância. A “consciência descrita por círculos”, em que a imagem é um desdobramento de camadas – é de outra natureza.

O curador da exposição, Bruno Miguel, em suas anotações descreve:
- Ressaltar a maturidade da pesquisa de Bruno, tecnicamente impecável, conceitualmente firme e arriscada ao não tentar se enquadrar nas características mais óbvias de nossa geração.
- O papel sincero da memória, não a clichê, mas a boa memória turva capaz de filtrar o resultado final da lembrança.
- Uma valorização maior do aspecto de rascunho de apagamento de processo em detrimento de uma opção mais estetizada que remetesse mais a um ambiente de design espontaneamente arranjado.



 Passante - Acrílica e lápis s/ tela  
 48x85cm (2014)


Bruno Belo - Rio de Janeiro, 1983. Vive e trabalha em Petrópolis/RJ. Artista, graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula, teve sua formação artística através de cursos livres e pelo acompanhamento e orientação de Luiz Ernesto,  João Magalhães, Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Glória Ferreira, Bruno Miguel e Daniela Labra. Foi selecionado para os programas da EAV e do Governo do Estado - Aprofundamento 2011; e Projeto de Pesquisa 2012. Participou de exposições no Brasil e exterior, dentre elas: Bienal do Recôncavo (BA); Declaring Independence (Eric Fischl Gallery, Phoenix, USA); 45º Salão De Arte Contemporânea (Piracicaba,SP); 13º Salão Nacional De Arte (Jataí, GO).